O avião que trouxe mais uma leva de brasileiros deportados dos Estados Unidos pousou no Aeroporto Internacional de Confins (a 37 quilômetros de Belo Horizonte) às 23h40 desta sexta-feira (7).
A chegada ocorreu após quase um dia de viagem desde que Cleony Dias Lagasso, 25, deixou o local onde ficou detido com a mulher e a filha de três anos por 18 dias, no estado do Texas, na fronteira com o México.
A família desembarcou no Brasil a 3.223 quilômetros de distância de sua casa, que fica em União Bandeirantes, um distrito de Porto Velho (RO) sem dinheiro e sem nenhuma assistência à espera.
“A gente não sabe [o que vai fazer agora]. Estamos tentando entrar em contato com a família. Pensamos que, chegando aqui, o governo tomaria uma atitude”, diz ele.
Inicialmente, o Itamaraty havia informado que 130 brasileiros estariam no voo que chegou a Confins. No aeroporto, porém, o número de pessoas que deixou a área de desembarque parecia menor. Até a publicação desta reportagem, nem a Polícia Federal nem o Itamaraty responderam qual seria o número final.
Depois do desembarque de um grupo de americanos, com bagagens —seguranças, segundo um funcionário do aeroporto que não quis se identificar— os brasileiros vieram, carregando apenas sacos plásticos onde se viam passaportes, celulares, fones de ouvido.
Os brasileiros ouvidos pela Folha disseram que não foram algemados em nenhum momento. Segundo eles, as únicas pessoas com algemas no voo desceram em uma parada no Equador. Em janeiro, outro voo vindo dos EUA chegou a Minas Gerais com brasileiros deportados que relataram terem sido algemados pelos pés e pelas mãos.
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) criticou o uso das algemas mas depois recuou, dizendo que não pediria a Trump para mudar o tratamento dado aos imigrantes.
Não havia representantes do governo a bordo. Alguns deportados contam que foram levados ao consulado brasileiro enquanto estavam detidos. Outros, que ouviram falar na detenção que havia representantes do governo brasileiro no local.
O voo fretado desta sexta é o terceiro a trazer deportados da fronteira norte-americana desde outubro do ano passado.Pagos pelo governo dos EUA, eles precisam ser autorizados pelo governo brasileiro.
Deportada com a filha de 14 anos e o marido, o plano de Edja Jesus, 48, era comprar passagens em um voo para Salvador o mais breve possível —a família vive em Lauro de Freitas (a 28 km da capital baiana).
“Oito dias sem tomar banho, oito dias sem escovar os dentes. Meu marido desmaiou de fome e eles não ajudaram. Quem ajudou fomos nós mesmos”, conta ela. “Fomos muito maltratados.”
Erivaldo Gomes, 62, marido dela, diz que teve queda de pressão pela alimentação fraca, quase sempre fria e que muitas vezes vinha azeda. A descrição do burrito servido, prato típico mexicano, é a mesma que a ouviu de outros brasileiros deportados em outubro.
“Só a forma como eles tratam as pessoas já é uma agressividade descompensada. Eu não sofri agressão física, mas sei de pessoas que sofreram. Ser puxado pelo cabelo, ser jogado em cela”, diz.
Grávida de cinco meses, Emily da Silva, 20, que tentou entrar nos EUA com o marido e a filha de um ano, conta que um dia passou tanta fome que o bebê parou de se mexer na barriga.
O número de brasileiros detidos na fronteira EUA-México aumentou dez vezes entre outubro de 2018 e setembro de 2019, segundo o Serviço de Alfândega e Proteção das Fronteiras (CBP, na sigla em inglês).
A política austera da gestão de Donald Trump contra imigrantes em situação irregular e a dificuldade de emitir vistos a pessoas nascidas no Brasil podem ter ajudado na escalada, de acordo com integrantes do Itamaraty ouvidos em dezembro.
O governo Trump solicitou formalmente ao de Jair Bolsonaro (sem partido) a autorização para fretar mais voos com o objetivo de deportar brasileiros em situação irregular de imigração. A prática não era comum entre os países. O Itamaraty diz que havia registro de outro voo em 2017.
Segundo a Policia Federal em Minas Gerais, voos com deportados podem se tornar mais frequentes. A polícia disse ainda que segue investigando casos suspeitos, mas sem falar em detalhes.
Apesar de haver moradores de outros estados, a maioria do grupo que chegou a Confins nesta sexta era de Minas Gerais.
Pâmela Cristina, 21, de Governador Valadares, conta que viu um guarda empurrando uma mulher com uma criança de colo e que era comum policiais da fronteira ficarem com o dinheiro das pessoas detidas.
“Tem muita gente que está aqui que não tem um centavo no bolso. A gente não imagina o quanto é sofrido. A gente entra com a mente sadia e sai com a mente doente”, afirma ela.
Muitos chegaram ao Brasil usando as calças de moletom cinzas e camisetas azuis que eram distribuídas como uniforme. Outros ainda tinham no pulso as pulseiras colocadas na detenção para controle —uma com um número de identificação, outra com a temperatura da pessoa.
Quem estava de tênis e botas chegou sem os cadarços, tirados pelos agentes da imigração. Algumas pessoas ainda calçavam o sapato de borracha laranja neon e outros as sapatilhas distribuídas na detenção.
Os brasileiros contaram que foram oferecidas duas opções: assinar a deportação e voltar ao país ou encontrar um advogado e tentar falar com um juiz para explicar o porquê de quererem ficar no país.
Era comum que brasileiros tentassem ficar assim nos EUA, entrando irregularmente e respondendo ao processo em liberdade, no que é conhecido como cai-cai, enquanto trabalhavam.
“Mas você não consegue advogado e o caso segue correndo. A polícia de lá não deixa fazer ligações, mesmo que seja um direito. Então, nem quis tentar”, conta Cleony.
A irmã de Fiama Inácio, 27, de Goiânia, conseguiu entrar e ficar nos EUA assim, mesmo depois de ser pega irregularmente na fronteira, na metade do ano passado. Por isso, Fiama resolveu arriscar, com o marido e o filho de seis anos. “Eles tratam a gente como se a gente fosse delinquente. Sei que a gente é ilegal, mas a gente tenta visto e não dão.
Fonte:Folha de SP