Após questionamento do Ministério Público Federal (MPF) sobre o memorando da Secretaria de Educação de Rondônia (Seduc-RO) que ordenava a retirada de 43 livros das escolas estaduais, o governo reafirmou que o documento não era oficial nem chegou a ser expedido.
Nesta segunda-feira (2), o MPF enviou ao G1 a íntegra das respostas do órgão, na qual o governo repete que a ordem de recolhimento não chegou a ser efetivada e que houve vazamento do texto.
A lista foi divulgada em 6 de fevereiro e tinha clássicos da literatura, como “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, “Macunaíma”, de Mário de Andrade, e “Os sertões”, de Euclides da Cunha.
O argumento do governo era que as obras relacionadas apresentavam “conteúdos inadequados às crianças e [aos] adolescentes”. A motivação inicial para o levantamento foi uma denúncia de que havia palavrões em títulos oferecidos nas bibliotecas estudantis.
Na ocasião, o secretário de Educação, Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu, confirmou ao G1 a existência do documento – mas revelou que se tratava de um “rascunho” feito por “técnicos” e que não chegou a ser expedido. O documento, que estava em sistema interno da Secretaria de Educação de Rondônia, passou a ser listado como sigiloso.
No dia seguinte à divulgação do documento, o MPF abriu investigação para apurar a atuação da Seduc. O procurador Raphael Luis Pereira Bevilaqua informou à época que a secretaria deveria explicar a fundamentação legal para mandar recolher os livros e apresentar motivação para expedição do memorando.
Ele também pedia explicações quanto à decisão de mudar o status do documento de “público” para “sigiloso” após a divulgação. “Em tese, esse procedimento é público, não tendo por que haver agravo de sigilo”, disse Bevilaqua.
As respostas da Seduc foram encaminhadas em 21 de fevereiro, prazo limite estabelecido pelo MPF. No posicionamento, a secretaria:
- disse que a divulgação da lista “ocorreu sem o conhecimento do titular da Seduc”, embora o nome de Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu constasse do memorando;
- repetiu que o documento partiu de “uma denúncia que nas bibliotecas das escolas estaduais havia livros paradidáticos com conteúdos inapropriados” mas que o processo foi encerrado “sem ordem de tramitação para quais órgãos externos, secretarias ou escolas públicas”;
- citou que o material foi “divulgado inadvertidamente de forma anônima na internet”, classificando a ação como “ato irresponsável”;
- reafirmou que “o texto não autorizado” jamais chegou a ser “encaminhado a nenhum destinatário”;
- observou que “ao final da análise verificou-se que os livros em questão tratam-se (sic) de clássicos da literatura” e que “muitos deles [são] usados em processos seletivos e vestibulares”;
- argumentou que “ao tomar conhecimento de que tinha ocorrido anonimamente a divulgação de documento não oficial em ambiente fora da rede intranet e que seu teor estava gerando polêmicas, foi procedida a alteração de acesso de público para restrito (e não sigiloso)”.
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Documento da Seduc mostra relação dos 43 livros que seriam recolhidos da rede de ensino em Rondônia. — Foto: Reprodução/Seduc
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Por meio de ofício, Seduc solicita recolhimento imediato de 43 livros da rede de ensino de Rondônia. — Foto: Reprodução/Seduc
A resposta encaminhada pela Seduc ao MPF não reproduziu um trecho da nota divulgada pela pasta no dia do vazamento do memorando, na qual a pasta citou que “serão tomadas todas as medidas necessárias para investigar o vazamento das informações internas equivocadamente documentadas”.
O G1 entrou em contato com a assessoria da secretaria para saber qual o resultado da investigação quanto ao suposto vazamento, mas não obteve resposta até a última atualização desta reportagem.
‘Ordem’ de recolhimento
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‘Macunaíma’ foi escrito por Mário de Andrade — Foto: Reprodução/EPTV
Na tarde do dia 6 de fevereiro, um memorando do qual constava o nome do secretário de Educação de Rondônia, Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu, passou a ser compartilhado nas redes sociais. Ao G1, ele afirmou ainda não concordar com o teor do memorando e disse que os livros listados não seriam recolhidos.
O ofício relaciona ainda 19 obras de Rubem Fonseca, oito de Carlos Heitor Cony e três de Nelson Rodrigues. Há ainda uma observação: “Todos os livros de Rubem Alves devem ser recolhidos”.
Dois clássicos da literatura internacional também aparecem: Franz Kafka, com “O castelo”, e Edgar Allan Poe, com “Contos de terror, de mistério e de morte”.
Ainda segundo Abreu, o pente-fino nas obras começou após a denúncia de que havia um palavrão no livro de contos “Amálgama” (Ediouro), de Rubem Fonseca, de 94 anos, um dos maiores escritores brasileiros vivos.
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Memórias Póstumas de Brás Cubas entrou na lista que estado pediu recolhimento. — Foto: Reprodução
ABL citou ‘censura’
Várias entidades divulgaram notas de repúdio contra o memorando da Seduc de Rondônia quando a lista vazou.
Segundo a Academia Brasileira de Letras (ABL), o pedido de recolhimento configurava censura e atingia tanto a literatura quanto a arte.
Machado de Assis, um dos escritores listados no memorando, foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras, em 1897.
“A Academia Brasileira de Letras vem manifestar publicamente seu repúdio à censura que atinge, uma vez mais, a literatura e as artes. Trata-se de gesto deplorável, que desrespeita a Constituição de 1988, ignora a autonomia da obra de arte e a liberdade de expressão. A ABL não admite o ódio à cultura, o preconceito, o autoritarismo e a autossuficiência que embasam a censura”, disse a ABL em nota divulgada à época.
“É um despautério imaginar, em pleno século XXI, a retomada de um índice de livros proibidos. Esse descenso cultural traduz não apenas um anacronismo primário, mas um sintoma de não pequena gravidade, diante da qual não faltará a ação consciente da cidadania e das autoridades constituídas.”
Para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o documento viola os mais caros princípios e garantias fundamentais da Constituição Federal. Já a União Nacional dos Estudantes (Une) afirmou nesta sexta-feira que a lista da Seduc “foi uma tentativa de censura à cultura”.