O Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) e o Ministério Público Federal do Espírito Santo (MPF-ES) apuram vazamento de informações sigilosas sobre o caso da criança de 10 anos que engravidou após ser estuprada.
O MPF-ES enviou um ofício à superintendente do Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (Hucam), Rita Checon, onde a menina foi atendida antes de interromper a gravidez em Pernambuco, e ao reitor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Paulo Sérgio de Paula Vargas.
No documento, o órgão quer saber da Ufes e do Hucam se há informações a respeito de eventual vazamento do nome e endereço da criança e dados médicos sigilosos e dos respectivos responsáveis; e a respeito de eventual constrangimento, ameaça ou qualquer outro tipo de pressão a médicos ou equipe auxiliar, no sentido de não realização do aborto.
Por força da legislação da infância e juventude, casos que envolvem incapazes, crianças e adolescentes devem ser mantidos em total sigilo, e a violação desses dados constitui ilícito civil e criminal.
Além disso, o MPF questionou por que o Hucam se negou a realizar o procedimento de interrupção de gravidez.
O órgão deu prazo até as 17h de quinta-feira, (20) para que o hospital e a universidade se manifestem sobre os questionamentos.
Durante uma coletiva de imprensa concedida nesta tarde (17), a superintendente do hospital disse que o Hucam vai abrir uma sindicância para saber se houve vazamento do prontuário da criança e que a recusa em fazer o aborto foi uma decisão “estritamente técnica” da equipe.
“Houve algumas notícias sobre vazamento de informação do prontuário da menor indevidamente. Nós vamos apurar. Eu não sei se isso ocorreu, não temos certeza se isso ocorreu dentro do hospital, mas uma sindicância será feita para apurar. Se isso aconteceu, serão tomadas as devidas providências”, disse Rita.
Sede do Ministério Público do Espírito Santo — Foto: Divulgação/MPES
No domingo (16), a Justiça do Espírito Santo já havia determinado que o Google Brasil, o Facebook e Twitter retirassem do ar, em 24 horas, informações pessoais da criança. A determinação ocorreu após um pedido da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo e do MPES.
No mesmo dia, a extremista de direita Sara Giromini havia publicado um vídeo em uma rede social em que divulgava o nome da menina. A conduta dela pode ser considerada crime com base em diversos artigos do Código Penal e do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), segundo juristas ouvidos pela BBC News Brasil.
O MPES, por meio da Promotoria da Infância e da Juventude de São Mateus, também investiga se grupos tentaram pressionar a avó da menina para que o aborto não fosse autorizado.
O MP ainda vai analisar áudios de conversas de pessoas que estariam pressionando a família da criança a não interromper a gravidez.
Amparada por uma decisão judicial, a criança interrompeu a gestação em um hospital de referência em Pernambuco, nesta segunda-feira, e passa bem. O suspeito do crime, que é tio dela e tem 33 anos, foi indiciado pelos crimes de ameaça e estupro de vulnerável, mas continua foragido.
De acordo com o MPES, todas as medidas para preservar e proteger a intimidade da criança estão sendo tomadas, sob pena de responsabilização e as diligências para busca e captura do suspeito do crime continuam.
Abusos e gravidez
A gravidez foi revelada no dia 7 de agosto, quando a menina foi ao hospital Roberto Silvares, na cidade de São Mateus, se queixando de dores abdominais. A menina relatou que começou a ser estuprada pelo próprio tio desde que tinha 6 anos e que não o denunciou porque era ameaçada.
Aborto
A criança passou por um procedimento e interrompeu a gestação no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), nesta segunda-feira (17). Ela estava na unidade desde domingo (16), quando iniciou o processo. O procedimento foi concluído por volta das 11h.
A unidade que atendeu a menina é referência estadual nesse tipo de procedimento e de acolhimento às vítimas. O texto aponta ainda que “todos os parâmetros legais estão sendo rigidamente seguidos”.
Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, da Universidade de Pernambuco (Cisam/UPE), localizado no Recife — Foto: Luna Markman/GloboNews
A ordem para interromper a gravidez foi do juiz Antônio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e da Juventude do Espírito Santo, atendendo a um pedido do Ministério Público do estado.
Um dos profissionais que atendeu a criança relata, na decisão judicial, que “ela apertava contra o peito um urso de pelúcia e só de tocar no assunto da gestação entrava em profundo sofrimento, gritava, chorava e negava a todo instante, apenas reafirmando não querer”.
A criança chegou a ser internada no Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), em Vitória, mas a equipe médica do Programa de Atendimento as Vítimas de Violência Sexual (Pavivi) se recusou a realizar o procedimento no sábado (15) porque “a idade gestacional não está amparada na legislação vigente”. Com isso, ela viajou para Pernambuco.
Segundo a superintendente do Hucam, a decisão da equipe foi “estritamente técnica”. Segundo ela, o Pavivis segue um protocolo do Ministério da Saúde que considera o aborto se a vítima estiver com até 22 semanas de gestação e o feto com até 500 gramas. Mas, no caso da menina, ela estava com 22 semanas e 4 dias de gestação e o feto pesava 537 gramas.
Por isso, ela explicou que o hospital não tinha capacidade técnica para fazer o procedimento necessário.
“O abortamento é considerado [seguindo a Nota Técnica do Ministério da Saúde para abortamento humanizado, que é adotado pelo Pavivis] se a gravidez está no limite de 20 a 22 semanas e se o peso fetal é até 500g. Essa criança estava acima desse ponto de corte que é dado pelo Ministério da Saúde. A criança não estava em risco iminente de vida ao chegar ao hospital, apesar de ter diabetes gestacional, a criança estava com saúde controlada”, disse Rita Checon.
Na decisão que autorizou a interrupção da gravidez, o juiz se baseia na Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, editada em 2005 pelo Ministério da Saúde, para autorizar a interrupção da gestação.
Segundo o magistrado, a norma “assegura que até mesmo gestações mais avançadas podem ser interrompidas, do ponto de vista jurídico, aduzindo o texto que é legítimo e legal o aborto acima de 20-22 semanas nos casos de gravidez decorrente de estupro, risco de vida à mulher e anencefalia fetal
O promotor Fagner Cristian Andrade Rodrigues defendeu o aborto como um direito da menor, inclusive para que ela possa se recuperar dos danos psicológicos causados pelo estupro.
O corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, instaurou neste domingo um pedido de providências para que o Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES) preste informações a respeito das providências adotadas pelo Judiciário local sobre o caso.