“Não é só uma briguinha de namorados?”. A pergunta feita por um policial dentro da delegacia de Vilhena (RO) foi o estopim para que uma jornalista de 30 anos (agredida com socos) desistisse de fazer um boletim de violência doméstica contra o então namorado.
A vítima, que preferiu não ter a identidade revelada por questão de segurança, não consegue aceitar que a falta de apoio na delegacia (durante o registro da ocorrência) foi o pior momento de todo o processo de violência doméstica.
Até chegar ao episódio de agressão, a vítima lembra que o relacionamento com o namorado era tranquilo.
“Um amigo dele, que o tinha como irmão, nos apresentou. Desde o primeiro momento a gente já ficou juntos. Iniciamos um relacionamento sem dizer que era uma relação. Ficamos juntos por volta de dois anos. Em um ano e meio, fomos muito amigos e parceiros em tudo que fazíamos”, lembra.
No entanto, nos últimos seis meses do relacionamento, segundo a jornalista, o companheiro começou a persegui-la (mas ela não percebeu de imediato).
“Ele nunca apresentou nenhum tipo de episódio de ciúmes. Antes, tínhamos o hábito de toda sexta-feira sair com os amigos motoqueiros e eu saía com minhas amigas. Era um acordo nosso. Mas ele começou me seguir para onde eu ia, claro, sem me avisar. Quando eu percebi, ele já estava lá, me vigiando. Eu não entendia aquilo”, comenta.
‘Príncipe desencanto’
Depois dos episódios de perseguição, a jornalista lembra que o companheiro passou a querer controlar os locais onde ela frequentava.
“Ele começou a querer mandar em mim. Eu não aceitava aquilo. Eu tenho minha personalidade, tenho vontade própria, sou uma pessoa de postura e não cedia ao que ele queria. Ele começou a ficar mais agressivo com as palavras por conta disso. Mas eu não podia deixar de ser eu por causa dele”.
Em um embate com a postura do agressor, os “escândalos” em público começaram a fazer parte do relacionamento do casal.
“Aconteceu por diversas vezes. Ele dava escândalo para me obrigar a ir embora com ele. Por observar que ele estava muito alterado, acabava cedendo e indo. Chegava em casa e ele sempre me prometia que ia mudar e estava passando por um processo de deixar de ingerir a bebida alcoólica, mas eram promessas que nunca vi serem cumpridas”, comenta.
Quando finalizou o curso de jornalismo na Universidade Federal, a mulher decidiu rever a família em uma cidade próxima de Vilhena.
Ao retornar, ela conta que os dois tiveram “alguns dias de paz”, mas foi questão de tempo para o companheiro voltar com o comportamento abusivo e, então, a agredi-la.
“Tanto ele como eu sempre fomos muito comunicativo e conhecido. A gente foi em uma festa, ele foi pra lado e eu pra outro, pra gente cumprimentar os amigos. Depois de ter cumprimentado um amigo dele, ele se voltou contra mim, pegou pelo braço e me tirou à força do local. Quando chegamos em casa, ele deu um soco no meu rosto. Depois, passaram se minutos, que pra mim foram eternos, com ele me espancando. Na sequência ele me trancou dentro da casa e foi embora”, relembra.
Ainda presa na casa, a vítima pegou o celular e conseguiu pedir ajuda a um amigo.
“Eu deitada no chão, quase sem conseguir falar, peguei meu celular e liguei pra um amigo. Ele conseguiu me achar. Abriu a porta aos chutes e me resgatou”, relembra.
Ao ver o estado da jornalista, o amigo, segundo ela, tomou a iniciativa de levá-la à delegacia para denunciar o agressor por violência doméstica.
“O policial que atendeu, depois de me ouvir, olhou e perguntou: ‘Não é só uma briguinha de namorados? Isso foi o que mais me doeu. Os machucados, a surra que levei do (naquela época) amor da minha vida, não se comparou com aquela frase que até hoje ecoa dentro de mim. Eu não quis fazer o boletim, me senti sem apoio. Naquela mesma noite fui embora de Vilhena. Abandonei meu trabalho, meus amigos, minha vida”.
Com o fim do relacionamento abusivo e depois de fuga da cidade onde tinha uma vida, a vítima conta que desenvolveu crises de ansiedade e início de depressão.
“Minha autoestima nunca mais foi a mesma. Não me sentia bem comigo e acabei somatizando em meu corpo. Acabei engordando muito. Até hoje, quando retorno à cidade de Vilhena, mesmo sabendo que ele não está há mais de um ano lá, não sinto vontade de andar pelas ruas sozinha, mesmo de dia. Parece que ele está em cada rua”, afirma.
‘Minando a autoestima’
“Ele sempre tentava me diminuir, vivia falando que eu estava me achando demais. Ele dizia que eu não conseguia viver sem ele. Era um jeito de minar minhas forças. Isso reflete até hoje na minha vida. Minha vida nunca mais foi a mesma. Não consigo me relacionar com ninguém, acabei me tornando uma pessoa mais fria”.
O que diz a Sesdec?
O G1 questionou a Sesdec sobre a alegação da vítima quanto a falta de preparo de policiais no atendimento das vítima de violência doméstica.
Em resposta, a Secretaria de Segurança, Defesa e Cidadania (Sesdec) reconheceu não haver curso de capacitação de policiais para atendimento de vítimas de violência doméstica.
Ainda segundo a pasta, quatro servidores lotados recentemente são os únicos que receberam treinamento específico para atender mulher.