A promessa de ganhar dinheiro fácil sempre chama atenção, como no jogo da fruta aposta, mas quando envolve dados biométricos, o assunto se torna muito mais sério. No Brasil, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) determinou a suspensão do programa da Worldcoin, que oferecia criptomoedas para quem aceitasse ter sua íris escaneada. A justificativa para o bloqueio foi a falta de transparência sobre a coleta e o uso dessas informações sensíveis.
As autoridades argumentam que os participantes muitas vezes não tinham uma compreensão real do que estavam autorizando. Embora a empresa alegue que os dados não eram armazenados e que tudo seguia normas de proteção à privacidade, especialistas apontam que práticas como essa podem explorar populações vulneráveis, que acabam cedendo suas informações por necessidade financeira, sem considerar os riscos a longo prazo.
O Brasil não está sozinho nessa decisão. Países como Espanha, Portugal e Argentina também suspenderam as operações da Worldcoin, enquanto na Alemanha e nos Estados Unidos o projeto enfrenta uma série de restrições. As principais preocupações giram em torno do consentimento real dos usuários, da segurança dos dados e do potencial uso indevido dessas informações biométricas no futuro.
Como Funcionava o Cadastro e a Recompensa em Tokens
A Worldcoin apresentava o programa como um avanço tecnológico para criar uma identidade digital única e descentralizada. O processo de inscrição começava com o usuário baixando um aplicativo e agendando um horário para a verificação. No local, uma esfera metálica futurista chamada Orb escaneava a íris, capturando um código exclusivo que supostamente garantia que a pessoa fosse um ser humano real e único dentro da rede.
Após a verificação, os usuários recebiam tokens WLD, a criptomoeda nativa da Worldcoin, como recompensa. Inicialmente, essa recompensa era de 25 tokens, mas os valores variavam conforme a região e as mudanças no projeto. Em alguns países, o pagamento foi realizado em stablecoins antes da migração para o WLD. No Brasil, relatos indicam que as pessoas recebiam cerca de R$400 a R$450 pelo escaneamento, valor que variava conforme a cotação da moeda digital.
Embora a empresa alegue que não fazia pagamentos diretos, a prática de distribuir tokens logo após a verificação levanta questionamentos. Para muitos, essa era uma estratégia de incentivo que mascarava um modelo de troca – algo que gerou resistência em diversas nações. Em alguns casos, a Worldcoin parcelava a liberação dos tokens, mantendo os usuários vinculados ao ecossistema por meses.
No Brasil, a proposta chegou a atrair um público considerável, especialmente entre aqueles que buscavam uma renda extra. Assim como acontece no turismo cultural, onde a experiência é um atrativo que motiva a participação das pessoas, a Worldcoin apostava na curiosidade e na recompensa financeira para expandir sua base de cadastrados. No entanto, as preocupações com privacidade e segurança de dados acabaram se sobrepondo aos supostos benefícios da tecnologia.
Riscos e Controvérsias: Privacidade e Consentimento em Xeque
A coleta de dados biométricos sempre levanta questões sobre segurança e privacidade, e no caso da Worldcoin, os alertas foram ainda mais intensos. Reguladores e especialistas apontam que os usuários muitas vezes não compreendem completamente o que estão autorizando ao fornecer suas informações. O fato de a verificação ser associada a uma recompensa financeira torna ainda mais difícil garantir que o consentimento seja realmente informado e livre de pressões econômicas.
Outro ponto preocupante é a falta de transparência sobre o que acontece com esses dados após o escaneamento. A empresa afirma que as imagens da íris não são armazenadas, sendo deletadas imediatamente após a verificação. No entanto, documentos internos mostram que, em algumas regiões, os códigos gerados pelas íris foram utilizados para criar identificadores únicos, o que levanta dúvidas sobre a real segurança desse processo.
Especialistas em proteção de dados alertam que, uma vez que um dado biométrico vaza, ele não pode ser alterado como uma senha tradicional. O risco de um possível uso indevido é permanente. O receio é que essas informações possam ser utilizadas para vigilância, rastreamento ou até mesmo fraudes de identidade no futuro. E, dado o histórico de vazamentos de grandes empresas de tecnologia, a promessa de total anonimização nem sempre pode ser levada ao pé da letra.
O fato de a empresa operar em diferentes países com regulamentos distintos também gera desafios adicionais. Na União Europeia, por exemplo, a lei de proteção de dados (GDPR) exige um nível rigoroso de segurança e transparência, o que não se aplica em todas as regiões onde a Worldcoin está ativa. Isso cria um cenário em que a privacidade dos usuários pode depender mais da jurisdição em que vivem do que da empresa em si.
Também existe a questão ética. A coleta de biometria em troca de dinheiro ou criptomoedas pode ser vista como uma exploração de pessoas em situação financeira vulnerável. Muitas delas aceitam participar do programa sem entender completamente as implicações. Esse modelo de incentivo financeiro para obtenção de dados sensíveis já foi criticado por organizações de direitos humanos, que alertam para o risco de um precedente perigoso no uso da identidade digital.
O Efeito Dominó: Outras Nações na Mira do Projeto
A decisão do Brasil de suspender o programa da Worldcoin não foi um caso isolado. Outros países também tomaram medidas contra a coleta de biometria em troca de criptomoedas, alegando riscos à privacidade e à segurança dos cidadãos. Na Espanha, reguladores proibiram a empresa de continuar suas operações, enquanto na Alemanha, autoridades afirmaram que o projeto não estava em conformidade com as leis europeias de proteção de dados.
Na América Latina, Argentina e República Dominicana também impuseram restrições. Em alguns casos, a justificativa foi a falta de transparência no processamento das informações biométricas e as preocupações com possíveis violações da soberania digital. Já em lugares como Portugal, a suspensão foi acompanhada por investigações sobre se a empresa estaria operando sem a devida autorização regulatória.
Mesmo com essas proibições, a Worldcoin segue expandindo sua atuação em países onde as regras são menos rígidas. Em nações com menor regulamentação de dados, a empresa encontrou terreno fértil para continuar sua estratégia. Esse movimento reforça o debate global sobre até que ponto a proteção à privacidade pode ser flexibilizada em nome da inovação tecnológica e da chamada “prova de humanidade” digital.