Uma decisão da Justiça do RS reconheceu a união estável formada por uma mulher e um homem que já era casado com outra mulher. A sentença é do dia 8 de outubro, mas foi divulgada na última sexta-feira (13) pelo Tribunal de Justiça do RS.
A decisão é resultado de um recurso, julgado pela 8ª Câmara Cível. A autora é uma mulher que se relacionou com um homem por 14 anos. Em 2011, ele faleceu e ela pediu a garantia de status de união estável, o que foi inicialmente negado.
O homem mantinha casamento desde 1977, em que teve dois filhos. Segundo a autora do pedido, o convívio entre o homem e a esposa era apenas amigável.
Ela residiu com o companheiro em Porto Alegre e em outras cidades do estado e do Paraná. Já a esposa vivia com os filhos no interior do RS, para onde ele viajava com frequência. O processo é sigiloso por se tratar de questão familiar, e os nomes dos envolvidos não foram divulgados.
O relator do recurso, desembargador José Antônio Daltoé Cézar, considerou que o relacionamento cumpria os requisitos que caracterizam união estável: convívio público, contínuo e duradouro, mútua assistência e intuito de constituir família. Assim, entendeu que a mulher pode ter direitos na partilha de bens, o que será definido em outra ação judicial.
No processo, foram incluídos depoimentos de amigos que conheciam o casal e documentos, desde cartões de embarque até recibos de compras que comprovaram ao juízo a ligação entre eles.
Para o advogado da mulher, Pedro Penna de Moraes Brufatto, a decisão é satisfatória. “Faz justiça a companheira que esteve ao lado do de cujus [falecido cujos bens estão em inventário] nos últimos 14 anos de vida dele. Essa era a vontade dele em vida e nada havia motivos para se alterar quando de sua morte”, disse.
A família do homem entrou com embargos de declaração, recurso que questiona pontos da decisão, ainda sem análise pelo tribunal.
‘Sentimentos não estão sujeitos a regras’
Segundo o Tribunal de Justiça, o Código Civil só abre exceção para reconhecimento legal de relacionamentos paralelos ao casamento para efeitos de partilha, quando o casal vive separado, seja apenas de fato ou judicialmente.
Porém, no entendimento de José Antônio Daltoé Cézar, o caso julgado possuía uma característica diferente: a esposa tinha conhecimento do relacionamento paralelo do marido.
“Ora, se a esposa concorda em compartilhar o marido em vida, também deve aceitar a divisão de seu patrimônio após a morte, se fazendo necessária a preservação do interesse de ambas as células familiares constituídas”, diz o juiz.
O relator diz ainda, na decisão, que “não me parece adequado que o formalismo legal prevaleça sobre situação fática há anos consolidada. Precisamos aceitar que os sentimentos não estão sujeitos a regras, tampouco a preconceitos”.
Para Cézar, casos como o julgado são “mais comuns do que pensamos” e que, por isso, precisam de proteção jurídica. Conforme o Tribunal de Justiça, a decisão pode ser considerada rara.
Adultos exercendo a liberdade
O professor de Direito do Unilasalle Marcos Jorge Catalan disse ao G1 que questões como a abordada no julgamento do recurso vêm sendo revistas há tempos pelos especialistas em direito de família. Em sua avaliação, o resultado da decisão está correto.
“Existe algum sentido, tendo como premissa o fato de que o direito se dissociou da moral e da religião, em aceitar intervenções do estado no exercício de liberdades positivas?”, questiona.
Ele concorda que a relacionamentos simultâneos possam constituir a realidade de muitas famílias no Brasil, considerando as crescentes discussões sobre poliafetividade.
“No Brasil tem a questão da pobreza, que acaba unindo mais de duas pessoas sob o mesmo leito conjugal”, afirma. “São adultos, exercendo atos de liberdade”, reitera.
Além disso, quem optar pelo casamento convencional, poderá seguir fazendo isso. Casos como o julgado, observa Catalan, não podem ser considerados bigamia, o que é crime, pois essa situação é quando há dois casamentos concomitantes.