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Jaru, 22 de novembro de 2024

Acidentes em estradas tiram a vida de milhões de animais por ano no Brasil

Diz a Constituição Federal que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, e que, para isso, cabe ao poder público proteger a fauna e a flora, “vedadas as práticas que provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”.

No entanto, no Brasil, 475 milhões de bichos silvestres morrem por ano nas estradas brasileiras. Isso é mais do que o dobro da população de brasileiros. São 17 mortes por segundo, 1,3 milhão por dia, como se os habitantes da cidade de Goiânia desaparecessem todos os dias.

Ilustração de dados

(foto: Editoria de ilustração)

 

Além de colocar em risco a existência de algumas espécies, os acidentes causados pelos atropelamentos são responsáveis por ferimentos graves e vítimas fatais entre motoristas e passageiros.

Os custos, altos para a economia e muito maiores para a biodiversidade, podem ser evitados com a implementação de corredores ecológicos e passagens de fauna, redução de velocidade e a devida sinalização nas rodovias. Embora obrigadas por lei, tais medidas de mitigação nem sempre são cumpridas.

Com a pandemia do novo coronavírus, a presença da fauna em ruas e rodovias do mundo inteiro intensificou-se, inclusive, em áreas urbanas, como consequência do isolamento social e da menor quantidade de veículos em circulação.

A redução no tráfego pode ter se refletido em menos acidentes, mas aumentou consideravelmente o risco, porque os bichos estão saindo mais das tocas e fazendo travessias nas estradas.

De acordo com o Observatório de Imprensa Avistamentos e Ataques de Onças (OIAA Onça) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), cerca de 90 onças são atropeladas por ano no Brasil. Na pandemia, a média, que era de 7,5 animais por mês, subiu. Em março, foram nove atropelamentos do maior felino das Américas, ameaçado de extinção.

O professor da Ufam Rogério Fonseca, doutor em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre e integrante do OIIA Onça, diz que, durante a pandemia, os grandes felinos saem mais das florestas e, no meio do caminho, deparam-se com estradas que não foram projetadas para garantir a proteção à fauna.

A situação é pior nos estados do Sudeste, onde estão 27% das rodovias brasileiras — a região concentra, em média, 40% dos atropelamentos de onças.

O professor destaca que o risco é maior à noite, quando os animais circulam mais. “A principal medida de redução de atropelamento é o planejamento para viajar durante o dia”, ressalta.

ATROPELÔMETRO

 

O atropelômetro do Centro Brasileiro de Ecologia de Estradas (CBEE) da Universidade Federal de Lavras (UFLA) aponta que, em 2020, já morreram 284,8 milhões de animais silvestres de 450 espécies nas estradas brasileiras.

O coordenador do CBEE, Alex Bager, diz que a maioria dos atropelamentos é de aves. Em segundo lugar, estão os mamíferos, cujas mortes geram mais comoção entre os seres humanos, com 22% (veja mais no quadro).

“O número é assustador. Trabalho há 10 anos com isso e não tinha ideia da magnitude, porque fazia monitoramento de 100 quilômetros (km), sem extrapolar para toda a malha viária brasileira. No entanto, entre agosto de 2018 e junho de 2019, decidi fazer minha tese de doutorado numa expedição por 30 mil km de rodovias pelo Brasil. Visitei mais de 100 unidades de conservação, monitorando os atropelamentos”, conta Bager.

A estimativa de 475 milhões de mortes de animais silvestres por ano é do CBEE, a partir dos estudos de Bager. O dado não inclui bichos domésticos, portanto, o número pode ser ainda maior. Para garantir o monitoramento, o especialista criou o Sistema Urubu, no qual as pessoas que encontram animais atropelados colaboram com os registros, enviando fotos e coordenadas.

No sistema, o aplicativo U-Safe modela as áreas mais críticas e avisa os motoristas quando aproximam-se de regiões onde o risco é maior. “É uma forma de salvar a vida dos animais e das pessoas, porque o choque entre eles pode causar a morte de ambos”, alerta.

Especializada no manejo em empreendimentos de transporte, a bióloga e pesquisadora de atropelamento de animais da Via Fauna, Fernanda Abra, ressalta a importância de medidas para mitigar as colisões, conservar a biodiversidade, reduzir a morte dos animais e assegurar segurança humana.

“O Brasil é o país com mais biodiversidade e tem a quarta maior malha rodoviária. Precisa mudar a forma como planeja, instala e opera suas rodovias. Todos os acidentes geram custos econômicos para os administradores rodoviários”, destaca.

Fernanda documentou e explorou os efeitos dos acidentes rodoviários envolvendo animais na segurança humana em São Paulo.

“Estimamos que a média de custos desses acidentes para a sociedade, entre 2003 e 2014, foi de R$ 56 milhões por ano, R$ 21,6 mil por acidente. A polícia rodoviária registrou, no período, média de 2.611 acidentes envolvendo animais por ano (3,3% do total), dos quais 18,5% acidentes resultaram em vítimas com ferimentos ou fatais”, explica.

Com base em relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Fernanda considerou os custos em cima de equipes deslocadas para remoção do animal, de cargas eventualmente tombadas na pistas, guinchos, cuidados hospitalares das vítimas. “Quem paga, no final, somos todos nós, por meio de impostos”, diz.

SOLUÇÕES

 

Passagens de fauna podem reduzir as colisões em 86% dos casos, assegura a especialista. Ela assinala que os licenciamentos ambientais concedidos às concessionárias preveem medidas que nem sempre são cumpridas.

“Existem casos e casos. A maioria, infelizmente, adota medidas forçada por ações ajuizadas pelo Ministério Público Federal”, lamenta. “O Brasil inteiro sofre com isso, mas o Centro-Oeste é recorde: em Goiás, na Chapada dos Veadeiros, e no Pantanal”, aponta, e cita como mau exemplo o Mato Grosso do Sul.

“Aquele estado tem uma beleza de fauna incrível e é um terror dirigir naquelas estradas. O MPF e o Ministério Público Estadual estão tomando a frente”, destaca Fernanda Abra.

O problema só será resolvido, garante a bióloga, quando a abordagem for multidisciplinar. “Temos que envolver profissionais de todas as áreas, ecólogos, arquitetos, engenheiros, para definir quais materiais e alternativas mais viáveis. Eu pesquiso isso há mais de 10 anos e vejo bizarrices. Uma placa de sinalização, por exemplo, reduz o atropelamento entre 0 e 3%”, observa.

VIADUTO PARA A PASSAGEM DE DE MICOS-LEÕES

 

Na semana passada, foi inaugurado o primeiro viaduto vegetado sobre a BR-101, no Rio de Janeiro. É a primeira passagem de fauna de duas previstas para o local, como contrapartida para a duplicação da via, que isolou a Reserva de Poço das Antas do restante da Mata Atlântica.

Como as passagens subterrâneas, que existem sob a rodovia, não funcionam para o trânsito de micos-leões, foi necessário criar o viaduto e florestá-lo para que os animais possam voltar a se comunicar com outros da mesma espécie que vivem no lado oposto da rodovia. Sem isso, pode ocorrer pouca variabilidade genética da população futura.

Criada em 1974, o Poço das Antas foi a primeira reserva biológica do país com o objetivo de preservar a Mata Atlântica e proteger espécies como o mico-leão e a preguiça-de-coleira.

Risco do inesperado é ainda maior

 

 (foto: Alex Bager/CBEE)
crédito: Alex Bager/CBEE

 

Os motoristas profissionais são treinados para desviar de alvos fixos, de carros em movimento e de ultrapassagens perigosas, mas o surgimento inesperado de animais na pista torna o atropelamento quase inevitável.

E as consequências, dependendo do tamanho do bicho, podem ser fatais. A possibilidade de o animal rolar por cima do carro coloca em risco todos os ocupantes do veículo, alerta o coordenador de desenvolvimento profissional do Sest/Senat do Paraná, Alfredo Lepri.

O fato é facilmente percebido durante as simulações realizadas para motoristas com carteira categorias D e E, habilitados para pilotar ônibus, carretas e veículos articulados.

“No simulador, que visa direcionar o motorista para a direção defensiva, nós colocamos situações imprevistas. São condições adversas de visibilidade e tráfego, inclusive, o surgimento de animais na pista”, conta. Para os perigos mais conhecidos, como objetos fixos, chuva, pedestres ou outros carros em manobras perigosas, os alunos mostram estar com reflexo alerta”, explica.

Contudo, a surpresa de um animal na pista quase sempre provoca acidente no simulador, revela o especialista. “O próprio bicho não tem a reação correta. É a mais inesperada possível. Os condutores sofrem acidente, desviam com tanta violência que alguns só não caem da poltrona porque estão de cinto, já que o simulador é bem realista, inclusive, nos impactos e capotagens”, ressalta.

Segundo as pesquisas do Sest/Senat, 99% dos alunos passam pelo equipamento com a sensação de que o fato realmente aconteceu.

Para evitar as colisões, o coordenador de desenvolvimento profissional orienta dirigir no melhor horário, evitar a noite, trafegar sempre dentro do limite de velocidade e usar os recursos do veículo para não sair do estado de alerta.

“Trabalhamos para saber o que deveria ter sido feito para que o acidente não ocorresse. Mas, nas simulações, a maioria acaba atropelando o animal”, revela.

PROFISSIONAIS

 

Os motoristas profissionais, que atravessam o país no transporte de cargas, lamentam a falta de condições das rodovias para evitar os atropelamentos. Conforme Marcos Teixeira, diretor da Costa Teixeira Logística, parceira da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística), a infraestrutura brasileira é, de uma maneira geral, precária.

“Vemos pouco investimento em corredores ecológicos. Milhões de animais selvagens são atropelados no Brasil todo ano e pouco se faz para evitar ou reduzir esses números”, afirma.

 

Além da falta de infraestrutura, Teixeira cita o excesso de velocidade e a falta de políticas públicas e de conhecimento dos condutores para o agravamento desse cenário.

“Temos muitos relatos de acidentes, sobretudo os de maior gravidade, geralmente com animais de maior porte, que acabam danificando o veículo. Os menores nem são relatados, porque caminhões nem sentem o choque”, ressalta.

CORREIO BRAZILIENSE


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