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Jaru, 21 de novembro de 2024

Típicos de Salvador, carrinhos de café ‘tunados’ participam até de concurso

 

Ceará, vencedor do concurso de carrinho de café do ‘Salvador Vai de Cafezinho ‘Imagem: Rafael Martins/UOL

No último 1º de maio, toda uma classe laboral de Salvador estava apreensiva. A turma dos vendedores ambulantes de café acompanhava com atenção o canal da Fundação Gregório de Mattos no YouTube. Ali, a entidade ligada à prefeitura realizava a cerimônia virtual do concurso “Salvador Vai de Cafezinho”, que premiava em dinheiro os carrinhos mais criativos utilizados para vender a bebida. Havia alguns meses que Moisés Sanches, 36, sentia uma inquietude. O mal-estar durava pelo menos desde agosto de 2020, quando acordou de sonhos intranquilos e não encontrou seu carrinho acorrentado na frente de casa, nas Sete Portas. Moisés até conseguiu recuperar o veículo furtado alguns dias depois, mas faltava a aparelhagem sonora, que fazia com que a peça fosse avaliada em R$ 5 mil.

Com dois filhos pequenos para criar, Sanches e sua esposa, Nara, já atravessavam situação financeira delicada por causa da pandemia. Em fevereiro, o concurso de carrinhos de café era uma luz no fim do túnel, mas a verdade é que Moisés não tinha condições de adquirir os materiais necessários para produzir um novo carrinho do zero. Por sorte, tinha amigos para superar o perrengue. O artesão resolveu pedir a ajuda de Ray Vianna, designer e artista plástico que assinou as capas de sete dos 14 álbuns da Timbalada. Vianna lhe cedeu seu ateliê, ferramentas e tintas, além de contribuir com a busca de ripas de madeira e material reciclável. Mas o projeto do carrinho, construído em cerca de três semanas, foi inteiramente de Moisés.

Ele, que perdera uma tia para a covid-19, criou uma espécie de “UTI do cafezinho”: ao mesmo tempo em que homenageava aqueles que partiram e os profissionais da área de saúde, a carreta mascarada e com dispenser de álcool em gel serviria como instrumento de conscientização. Nem que, para isso, Sanches – paramentado como um intensivista no vídeo em que gravou para o concurso – precisasse fazer ecoar a estridente sirene do veículo. A noite daquele Dia do Trabalhador já caía quando Moisés finalmente deixou a angústia de lado. A decisão do júri, formado pelo cantor Gerônimo Santana, pela atriz Maria Menezes, pelo fotógrafo Adenor Gondim, pelo lhe deu o terceiro lugar no concurso e o agraciou com R$ 3 mil. O primeiro e o segundo colocados foram Francisco Carvalho, o Ceará, e José Carlos dos Santos, que levaram R$ 5 mil e R$ 4 mil, respectivamente. Cada um dos outros sete finalistas ficou com R$ 600.

Ceará, 60, vencedor do concurso de carrinho de café do ‘Salvador vai de cafezinho’.

‘Imagem: Rafael Martins/UOL

Do artesanato ao minitrio…

Moisés é herdeiro de uma tradição que evoluiu. Nunca vendeu sequer um copinho de café coado na vida, mas é artesão especializado na fabricação dos carrinhos enfeitados, utilizados por dezenas de ambulantes de Salvador.

A cultura tem origem nos anos 1970. A moda dos carrinhos de venda de café surgiu quando os vendedores passaram a utilizar caixotes de madeira (os chamados “guias”) para acomodar garrafas térmicas cheias de café puro ou com leite, além de chá e achocolatado.

Com o tempo, alguns deles instalaram rodas e volantes no mecanismo para facilitar o deslocamento em meio às multidões do Centro. A necessidade cada vez maior de chamar atenção levou muitos dos populares “cafezinhos” a tunarem os veículos para deixá-los cada vez mais parecidos com trios elétricos, com pinturas vibrantes, acabamentos platinados e a instalação de potentes sistemas de iluminação e som. “O negócio evoluiu e se tornou um verdadeiro nanotrio”, destaca Moisés. Atualmente, todos os formatos coexistem e sua utilização depende do gosto e das necessidades de cada ambulante.

É inegável, porém, que o design “trieletrizado” se destaca. E foi ele que fez Sanches, instalador de som automotivo, se aproximar dos possantes. Há 10 anos, o artesão saído do sul da Bahia começou a vender CDs piratas no Centro quando deparou com a barulhenta carreta do cafezinho de Paulo Cesar de Jesus, que vencera um dos concursos realizados na década anterior. “Sou fascinado por carrinhos de madeira, então pedia para dar uma volta com a guia dele toda vez que ia lá no Pelourinho. Já tava até ficando chato.”

Impossibilitado de investir alguns milhares de reais para que Paulo lhe construísse uma carretinha, Moisés decidiu se virar e produzir seu próprio veículo tunado.Hábil em desenho, projetou o “Trio do MP3”, que conseguiu concluir pela habilidade nos rabiscos e pela lábia com que trocou seus serviços de instalação de som pelos insumos necessários para a confecção dos carros.

Hoje, Sanches vende cada carrinho por valores que giram entre R$ 3 mil e R$ 5 mil, além de alugá-lo para eventos e gravações. Suas artes já apareceram em videoclipes de Rincon Sapiência e e ÀTTØØXXÁ (“Arrastão”), Alexandre Peixe e Saulo (“Pretinha”), numa live de Daniela Mercury e em um comercial da secretaria de Turismo de Salvador. A atriz Regina Casé também tem uma carreta “by Moisés” em sua residência.

Imagem: Rafael Martins/UOL.
Moisés Sanches, fabricante de carrinho de café em Salvador

Imagem: Rafael Martins/UOL.

…e do minitrio às galerias

A primeira pessoa a perceber que os carros de cafezinho haviam deixado de ser “apenas” um instrumento de trabalho e se tornado, ao mesmo tempo, um traço da cultura popular soteropolitana e um valioso objeto artístico foi o marchand Dimitri Ganzelevitch, 84 – que, em maio, lança o livro “Alegria, Café Quentinho”, com contribuições do cordelista Franklin Maxado e do especialista em políticas culturais Paulo Miguez, vice-reitor da UFBA (Universidade Federal da Bahia).Radicado em Salvador há 46 anos, o franco-marroquino enxergou além das garrafas térmicas e notou a criatividade dos comerciantes.

Entre 1987 e 2007, Ganzelevitch realizou 13 edições do Concurso de Guias e Carros de Cafezinho. Os eventos aconteciam no Mercado Modelo e chegaram a ter a participação de jurados como Regina Casé, o carnavalesco Joãosinho Trinta e o ex-ministro da Cultura Juca Ferreira. Em seu auge, reuniu mais de 160 concorrentes, mas a migração de vendedores para outros ramos do setor de serviços fez com que, gradativamente, o número de participantes fosse diminuindo.O Salvador Vai de Cafezinho, que resgatou essa herança, teve 26 competidores.

Na qualidade de colecionador e comerciante de arte, Ganzelevitch contribuiu para que os carrinhos ganhassem as salas de exposição. Galerias internacionais já expuseram carretas de cafezinho soteropolitanas, ao passo que o Museu do Homem do Nordeste (PE) e o Afro Brasil (SP) contam com alguns veículos em seu acervo permanente.

Depois do reconhecimento no meio artístico, o próximo passo para o carrinho de café soteropolitano é o tombamento como o primeiro patrimônio simultaneamente material e imaterial da capital baiana. Ao menos é o que pleiteia o projeto Salvador Vai de Cafezinho, que iniciou um diálogo com a secretaria de Cultura e Turismo para tentar viabilizar o processo.

José Silva fabrica carrinhos de café enquanto a família sai vendendo a bebida pelas ruas da cidade

Imagem: Rafael Martins/UOL.

Brinquedo de gente grande

A consagração dos instrumentos de trabalho dos ambulantes como objeto estético foi o catalisador da mudança de rotina de parte deles. Há cafezinhos que passaram a se dedicar especificamente à produção e à venda de carros para colecionadores e colegas de profissão que possam investir em carretas mais exuberantes.

Ceará, 60, vencedor do concurso, é um desses especialistas. Dezenas de veículos ganharam vida nas jornadas duplas do ambulante — inclusive o campeão, pintado de verde, amarelo e branco, cores da bandeira de seu estado natal. O diminuto senhor domina a região da avenida Joana Angélica, no bairro de Nazaré, e foi naquelas bandas que deu fama à sua oficina, onde também reside, solitariamente.

A poucas centenas de metros dali, num quarto alugado de um casarão da Barroquinha, José Silva, 44, vive como se fosse o avesso de Ceará. Se o colega de trabalho se vira sozinho em Salvador e os seus parentes nunca viram um de seus triozinhos de perto, o baiano colocou os adultos da família no ramo da “cafeína itinerante”. Apenas José fabrica os veículos, mas a esposa, Marilene, e o irmão mais novo, Laércio, 40, utilizam as suas criações para trabalharem na rua. Todos os dias, eles acordam às 2 da manhã para prepararem 20 litros de café e, ao amanhecer, empurram os carrinhos ladeira acima, rumo à Avenida Sete de Setembro.

Autodidatas, ambos começaram a trabalhar como carpinteiros e tiveram de bater cabeça para desvendar os mistérios de outras áreas: aprenderam um pouco de mecânica, hidráulica e eletrônica para instalarem os complexos sistemas de direção, controle e som dos carrinhos. Seus gostos musicais também coincidem. Seresta, arrocha e o romantismo de Amado Batista e da dupla Zezé di Camargo e Luciano estão no topo de suas predileções e sempre os acompanham enquanto transitam pelos becos e avenidas do Centro.

A dupla também começou a atuar com carrinhos estilizados mais ou menos na mesma época, no final dos anos 1990, e pelo mesmo motivo. Foi a necessidade de trafegar pelo mundaréu de gente no Carnaval e o intuito de fidelizar a clientela que fez com que investissem em carretas cheias de apetrechos. Alguns grupos de foliões chegam até a pagar cachês para que os ambulantes permaneçam num mesmo ponto dos circuitos, lhes servindo como cafeteria e jukebox.

osé afirma que chega a ganhar R$ 8 mil durante o Carnaval — o dobro do que fatura num mês normal. Durante a festa momesca, inclusive, o veterano costuma apostar com Laércio para ver qual dos dois vende mais. “Ele sabe quem vence. Tem que respeitar o coroa”, brinca. Apesar disso, no concurso de carrinhos, foi o mais novo que levou a melhor, ficando entre os 10 primeiros colocados com uma carreta construída pelo primogênito.

O elo entre os cafezinhos e o Carnaval evidencia o quanto o sonho move o trabalho dessas figuras essenciais. Através dos carrinhos, os ambulantes aliam o sustento de suas famílias ao prazer de ficarem conhecidos pela posse de um objeto de desejo, o que muitas vezes lhes foi negado numa infância humilde e marcada pela necessidade diária de ir à luta.

Fonte: Uol


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