Em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, publicada nesta quinta-feira (24), o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou que resolver os problemas de acesso à internet dos estudantes não é uma atribuição da pasta. Segundo ele, cabe aos estados e municípios garantir o ensino remoto durante a pandemia.
Ribeiro também foi questionado sobre a importância da educação sexual na sala de aula. Ele disse que é importante mostrar “que há tolerância”, mas que “o adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo [termo considerado preconceituoso]” vêm, algumas vezes, de “famílias desajustadas”.
A palavra “homossexualismo” remete a “doença” por causa do sufixo -ismo. Desde 1973, a Associação Americana de Psiquiatria (APA, sigla em inglês) retirou a homossexualidade (o termo correto para a orientação sexual) da lista de doenças. Depois, o órgão foi seguido por uma série de entidades de saúde. Em 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) seguiu as observações dos pesquisadores. No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia também adota essa visão.
Para entidades ligadas à defesa da educação e aos direitos LGBTQI+ , o ministro está “equivocado”, tanto em relação às atribuições do MEC em articular ações e repassar recursos a estados e municípios, quanto em relação aos direitos das pessoas homossexuais e transgêneros.
Abaixo, veja os principais pontos da entrevista e, em seguida, a repercussão:
O ministro da Educação, Milton Ribeiro, em seu gabinete de trabalho na sede da pasta, em Brasília, durante entrevista — Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADÃO CONTEÚDO
Ensino remoto e volta às aulas
Milton Ribeiro reforçou que a decisão sobre a volta às aulas não vai partir do Ministério da Educação (MEC). Mas disse que, por ele, as atividades presenciais já teriam sido retomadas, já que “saímos da crista da onda e temos de voltar”.
Acerca do acesso à educação remota durante a pandemia, o ministro afirmou que as desigualdades foram apenas evidenciadas, mas não criadas agora.
“Não foi um problema criado por nós. A sociedade brasileira é desigual e não é agora que a gente, por meio do MEC, que vamos conseguir deixar todos iguais.”
Os casos de alunos que não têm internet, computador ou celular em casa para acompanhar aulas on-line devem ser resolvidos pelos estados e municípios, segundo Ribeiro.
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Educação sexual
Milton Ribeiro disse que as escolas “perdem tempo” falando de “ideologia” e ensinando sobre sexo, sobre “como colocar uma camisinha”. Segundo ele, a abordagem pode favorecer uma “erotização das crianças”.
Para o ministro, discussões sobre gênero não deveriam ocorrer na escola.
“Quando o menino tiver 17, 18 anos, vai ter condição de optar. E não é normal. A biologia diz que não é normal a questão de gênero. A opção que você tem como adulto de ser homossexual, eu respeito, mas não concordo”, afirmou.
“É claro que é importante mostrar que há tolerância, mas normalizar isso, e achar que está tudo certo, é uma questão de opinião”, disse. “Acho que o adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo (sic) têm um contexto familiar muito próximo, basta fazer uma pesquisa. São famílias desajustadas, algumas. Falta atenção do pai, falta atenção da mãe. Vejo menino de 12, 13 anos optando por ser gay, nunca esteve com uma mulher de fato, com um homem de fato e caminhar por aí. São questões de valores e princípios”.
Professores transgêneros, na opinião do ministro da Educação, não podem incentivar os alunos “a andarem por esse caminho. Tenho certas reservas”.
Encontro com Tabata Amaral
Em 16 de setembro, Milton Ribeiro reuniu-se com a comissão externa da Câmara dos Deputados, que acompanha ações do MEC. A deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) esteve no encontro e postou uma foto ao lado do ministro.
Na entrevista ao “Estadão”, Ribeiro disse que o presidente Jair Bolsonaro quis “entender por que a Tabata publicou uma foto”. “Eu falei ao presidente que recebi a comissão”, respondeu o ministro.
Repercussão
Para Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pela Educação, o ministro Milton Ribeiro tem “uma opinião discriminatória. É um crime falar isso como representante do estado. O governo não pode ter um tipo de pronunciamento discriminatório assim”.
Para Pellanda, o ministro da Educação apresenta uma “interpretação equivocada” da Constituição ao transferir a responsabilidade sobre a volta às aulas apenas para estados e municípios.
“Quando ele fala que quem tem jurisdição [sobre a volta às aulas presenciais] são estados e municípios, é verdade. Mas isso não exime o Ministério da Educação, que representa a União no sistema federativo, da sua responsabilidade redistributiva e superlativa em termos técnicos e financeiros, como cita o artigo 211 da Constituição Federal”, diz.
“O artigo 206 fala da igualdade de acesso e permanência na escola, do padrão de qualidade, que precisa ser garantido pela União, estados e municípios. O ministro utilizou de uma interpretação equivocada para se eximir da responsabilidade. A União tem responsabilidade técnica e financeira sobre a educação básica no apoio às redes”, afirma ela.
Eduardo Luiz Barbosa, coordenador-geral do Centro de Referência e Defesa da Diversidade, ONG em defesa dos direitos LGBTQI+ de São Paulo, afirma que há “desinformação” do ministro Milton Ribeiro sobre o tema e terminologias. O ministro usa a palavra “homossexualismo”, por exemplo, que vincula a homossexualidade à doença devido ao sufixo “ismo”, o que já é amplamente conhecido como falso.
Professor da rede pública há 34 anos e gay, Barbosa conta que a escola deve ser um espaço de acolhimento para todas as crianças, para evitar bullying, abandono e evasão.
“Escola é espaço de diálogo e de escuta, onde essas questões da juventude, principalmente em relação à sua sexualidade, têm que estar presente. Isso interfere em processo de permanência da escola, em um melhor aproveitamento de conteúdo educacional. Se não tiver escuta desvinculada de qualquer dogma, preconceito e discriminação, você corre o risco de estar falando vazio, ao vento, preconizando coisas que de fato não vão fazer sentido”, afirma Barbosa.
“Antes de mais nada, o representante do MEC precisava ser alguém melhor qualificado para entender que, além das suas posições, existe todo um país para ser orientado com espírito colaborativo, tanto do MEC quanto das secretarias municipais e estaduais de Educação para que essas crianças não sofram mais violência que já sofrem no cotidiano”, defende.
Vitor de Angelo, vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed), diz que trazer à tona a discussão sobre valores morais na educação tira o foco dos problemas do país.
“É ruim, porque reacende o debate de assuntos que podem ter importância para grupos específicos, mas não são as grandes questões e os grandes desafios da educação brasileira. Quanto mais a gente caminha para este lado, mais nos afastamos dos desafios fundamentais para o país.”
Sobre a condução da pandemia, Angelo critica a resignação do ministro frente aos problemas sociais que encontram eco na educação.
“Respeito a visão do ministro, mas acho que quando você é gestor de uma área social, como é a educação, a última coisa que você pode fazer é se resignar diante dos problemas na sua área. Não podemos nos resignar com a desigualdade. Quando a gente faz isso, sabotamos nossa própria relevância”, defende. Para ele, o MEC precisa “assumir o seu papel como ministério” na condução da crise provocada pela pandemia.
Para Priscila Cruz, do movimento Todos pela Educação, também há equívoco em relação às leis que regem a educação do país, que colocam o MEC com um papel de articulação nacional.
“A educação está sofrendo consequências muito devastadoras. Nenhuma liderança pública pode dar as costas para soluções ou esforços necessários de enfrentamento da pandemia na educação. Ele poderia criar um gabinete de crise, monitorar o impacto, o acesso às aulas, a aprendizagem, negociar com as empresas de telefonia para baratear ou zerar o custo para estudantes de escolas públicas. Da mesma forma que o ministério da Saúde tem os boletins com casos e mortes por Covid, o ministério da Educação poderia produzir um diagnóstico da rede”, afirma.
Erika Hilton, ativista dos direitos LGBTQI+, diz que o ministro, ao associar a homossexualidade a problemas familiares, coloca a comunidade como “cidadãos de segunda classe” que precisam se adequar “às normas cis-hétero”.
“Associar homossexualidade a um problema e tratar como disfunção familiar é uma das coisas mais graves [na fala do ministro]. Nos coloca como cidadãos de segunda classe, como se precisássemos nos adequar às normas cis-hétero. Não podemos admitir que o ministro diga isso de forma debochada, criminosa”, afirma Hilton.
Segundo a ativista, ela vai entrar com uma representação na Procuradoria-Geral da República contra o ministro da Educação pelas falas “LGBTfóbicas”. A peça jurídica está sendo elaborada e deverá ser protocolada na semana que vem.
Para ela, o ministro se equivoca mais uma vez ao dizer que a homossexualidade é uma “opção”.
“Que pessoa optaria por escolher, de livre e espontânea vontade, entrar em um segmento social que é completamente negado de direitos, afastado do seio familiar, mal tratado, executado, apedrejado? O Brasil é o país que mais mata LGBT. Nenhuma pessoa optaria por fazer parte disso. Se trata de uma condição humana que só conseguiremos tirar das margens da sociedade quando ministros e governantes começarem a entender que essas pessoas fazem parte do grupo social e que a educação precisa ter um papel humanizador, incluir e não afastar e discriminar”, afirma.