Parece ter chegado ao fim, na tarde desta sexta-feira (17), em Londres, o pesadelo que centenas de brasileiros viviam desde que a explosão dos casos de coronavírus transformou a vida de trabalhadores e turistas em todo o mundo.
Eles estão voltando para casa em um voo de Estado, como é chamado no jargão diplomático o voo fretado pelo Ministério das Relações Exteriores para a repatriação de cidadãos – neste caso, brasileiros separados das famílias e com dificuldades financeiras.
Incluindo 5 crianças, o voo sai de Londres para Guarulhos, reunindo homens e mulheres que estavam em cidades da Inglaterra e da Escócia. Oferecido aos passageiros sem custos, após uma articulação complexa, liderada pelo consulado-geral do Brasil em Londres, o avião ainda faz uma parada em Paris, onde recolherá cidadãos que estavam na França, na Bélgica e na Suíça.
Os brasileiros resgatados se dividem em dois grandes grupos, segundo fontes ouvidas pela BBC News Brasil no Itamaraty.
O primeiro é formado por turistas que tiveram seus voos de volta ao Brasil cancelados em meio à pandemia da covid-19. Longe de casa por mais tempo que o previsto, muitos passaram os últimos dias sem dinheiro para hotel ou alimentação.
O segundo grupo reúne brasileiros que já viviam no exterior, com ou sem documentos, e de repente se viram sem empregos ou moradia após a eclosão da doença. Sem condições de se sustentar, estas pessoas buscaram ajuda para voltar para o Brasil.
Nas últimas semanas, mais de 800 pessoas procuraram autoridades brasileiras em Londres em busca de apoio.
Histórias de sofrimento
Luana* é uma destas pessoas.
Casada com um inglês, ela vivia em uma cidade do interior do país há alguns anos. O hábito do marido de beber nos fins de semana foi piorando e a situação se tornou insustentável após o início da quarentena decretada em todo o país.
“O casamento foi se deteriorando. É uma situação difícil, porque não é ruim o tempo todo. É ruim, depois bom, ruim, depois bom. Ele pode ser o melhor marido durante a semana, mas a vida vira um inferno no fim de semana. Ele bebe de sexta-feira até domingo à noite, sem parar”, diz.
“Agora, nessas últimas semanas, ele tem bebido todos os dias. Agora estou com dor – fui operada há um ano -, longe da família, não tenho tratamento e não posso contar com meu marido”, disse a brasileira, que está desempregada, à BBC News Brasil.
Carlos* é jornalista e, depois de ficar sabendo de chances de emprego na Inglaterra, decidiu se mudar no início do ano.
O mercado, que já vinha se fechando com o Brexit – como é chamada a saída do Reino Unido da União Europeia – “desapareceu” com a pandemia.
“Decidi voltar porque já são muitos meses sem emprego. Não tenho dinheiro para me manter aqui”, disse o jovem à reportagem.
Felipe*, que tem cidadania italiana e vivia com a esposa em Londres, procurou ajuda consular por preocupação com a família no Brasil.
“Estou voltando porque preciso ficar perto da famíla. A situação no Brasil vai estourar e decidimos que não podemos ficar longe.”
Operação
A repatriação de brasileiros se transformou em um dos principais desafios enfrentados pelo Itamaraty, que criou um grupo especial para mapear cidadãos em vulnerabilidade e dialogar com países para, por exemplo, solicitar eventuais aberturas de espaço aéreo em caráter excepcional.
“Existe uma política de repatriação de brasileiros em condição de necessidade. São pessoas que se veem em dificuldades financeiras, ou sem possibilidade de retornar”, diz um porta-voz do Consulado-geral do Brasil em Londres à BBC News Brasil.
Outros voos de Estado, fretados pelo ministério para estes deslocamentos, já buscaram brasileiros em países como Peru, Equador e Marrocos.
Na Europa, o mesmo aconteceu em Portugal – e agora na Inglaterra.
“Não é coincidência que os dois primeiros voos da Europa venham de Portugal e do Reino Unido. São as duas maiores comunidades brasileiras no continente – e onde também está o número mais elevado de retidos na condição de desvalidos – mais de 800”, explicou a fonte.
Autoridades estimam que, entre pessoas com e sem documentos, a comunidade brasileira no Reino Unido oscile entre 220 e 250 mil pessoas.
Já o número de turistas brasileiros que vem ao país chega a 400 mil por ano.
Em outros locais com comunidades menores, como a Itália, ainda não há notícias de voos fretados e há relatos de brasileiros que ainda enfrentam dificuldades para pagar voos comerciais, que podem custar cerca de 700 euros.
Corrida contra o tempo
Desde a segunda quinzena de fevereiro, com mais intensidade a partir de março, diplomatas vêm trabalhando na tentativa de reacomodar turistas que tiveram voos cancelados.
“Pelo menos 200 conseguiram ser reacomodados em voos comerciais e conexões pela Europa”, diz o porta-voz do Consulado em Londres.
“Mas este o número vinha aumentando. Ao mesmo tempo, os que já estão aqui há algum tempo se viram desempregados, apavorados, e buscaram apoio.”
Com o cancelamento de voos comerciais pelas três companhias que fazem trajetos entre o Reino Unido e o Brasil, o Consulado-geral começou a corrida contra o tempo para a contratação de um avião.
O voo escolhido é da Latam – companhia que ofereceu preços mais baixos que a British Airways e a Norwegian.
Segundo fontes ouvidas pela reportagem, uma rede informal com instituições de caridade, religiosas e ONGs foi criada para ajudar a abrigar e alimentar os brasileiros em situação de vulnerabilidade extrema.
O Consulado também tem oferecido assistência psicológica aos brasileiros.
Articulação
Como o drama se repete em outras capitais, o Consulado em Londres optou por se articular com outras representações diplomáticas na tentativa de “desafogar a pressão” sobre brasileiros espalhados pela Europa.
“Essa operação se repetiu nos outros lugares. Houve uma mobilização grande nos consulados em Paris, em Genebra, em Bruxelas, na Embaixada em Dublin e aqui no Consulado-geral em Londres”.
“Para o interesse público, faz mais sentido”, diz a fonte.
A lista de passageiros começou com 177 turistas que tiveram voos cancelados.
“Depois grupos, de acordo com a ordem de chegada, de pessoas com dificuldade. Isso inclui casos de violência doméstica, por exemplo.”
Metade dos que procuraram o Consulado inicialmente com intenção de voltar ao Brasil desistiu da ideia após novo contato das autoridades brasileiras.
“Nossa interpretação é de que talvez tenha havido um momento inicial de desespero e, com o tempo, essas pessoas encontraram outros meios de ficar.”
Atualmente, o Consulado em Londres tem uma lista de espera de 70 brasileiros que também tentam voltar para casa.