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Jaru, 28 de março de 2024

“Tive medo de não amar se minha filha nascesse com microcefalia”

Gisele de Lima,mãe de Geovanna.A menina nasceu sem microcefalia,mas ficará em observação.Gisele teve zika no quarto mês de gestação (Foto: Letícia Moreira/ÉPOCA)Gisele Lima chegou ao Hospital Universitário de Jundiaí às 10h. Por quase seis horas, trabalhou o parto de sua menina. Cada contração era um amálgama de dor e angústia. Com quatro meses de gestação, Gisele fora diagnosticada com o zika. A posição de sua caçula no ventre impossibilitou um ultrassom conclusivo sobre o tamanho do cérebro da pequena. Gisele estava no escuro. Às 15h40 do dia 17 de dezembro, a menina veio à luz. A médica tomou um susto que sequestrou o fôlego de Gisele. “Calma, mãe, foi só o cordão umbilical que rompeu. Ela está bem. É saudável.” Gisele não ousou perguntar mais nada. Temia a resposta. Entregou-se ao choro enquanto a filha era posta em seu peito. A mãe fitou a cabeça da menina por um instante. Parecia normal. Geovanna Antonieta chegava ao mundo contrariando a expectativa de vínculo certo entre o vírus e a microcefalia. O desafogo que Gisele sentiu foi intenso e etéreo.

Quando Gisele decidiu visitar a sogra e o pai na minúscula Coité do Noia, em Alagoas, não se falava em zika pelas paragens de Várzea Paulista, onde a moça mora. Era agosto. Gisele estava grávida de quatro meses. Alheia à epidemia que já assolava o nordeste, ela viajou até lá dois dias de carro, com o marido José Cícero, sem um repelente sequer na bolsa. Coité do Noia é uma dessas cidades brasileiras congeladas no subdesenvolvimento. O Índice de Desenvolvimento Humano do município de 11 mil habitantes está na faixa do “baixo”. Não há saneamento básico, água encanada. O abastecimento é feito por caminhão-pipa e o armazenamento da água é precário. É o que o Aedes aegypti costuma chamar de doce lar. “Lá, já estava uma epidemia. Quando eu tive os sintomas e fui ao médico em Arapiraca (cidade vizinha), tinha umas dez pessoas com suspeita na fila. Mas ninguém sabia direito o que era, o que devia fazer”, diz Gisele, com Geovanna rendida a um sono profundo em seu colo e o mais velho, Kayk Matheus, brincando a seu lado. Coité do Noia e mais de uma centena de municípios nordestinos vivem aepidemia, portanto, desde agosto – no mínimo. Vivem o descaso há séculos. Gisele teve febre, dor no corpo, manchas vermelhas pelo corpo. O médico alagoano achou, inicialmente, que era dengue. Receitou soro, água e antialérgico. Dez dias mais tarde, veio o diagnóstico do zika.

De volta à Várzea Paulista, cidade-dormitório de Jundiaí, Gisele retomou seu pré-natal sem maiores preocupações. Até que, com seis meses de gestação, ouviu, em um programa de TV, que cientistas começavam a vincular o vírus que ela carregara em seu corpo à microcefalia dos bebês. Gisele era só paúra. Agora, com Geovanna segura em seu colo, ela diz que “passaram mil coisas na cabeça” para, em seguida, começar a emendar as mil. “Senti medo. Medo. Eu tinha medo de ela nascer com microcefalia. Se eu ia estar preparada para lidar com isso, porque ela ia precisar de atenção. Medo de ela não resistir.” Gisele faz uma pausa. “Eu tive medo de rejeitar. Imagina você esperar a gravidez todinha… tive medo de rejeitar, de não amar. De não saber cuidar. De viver com ela uns meses e ela não resistir.” É medo muito além do que uma mãe merece. Entre os mil pensamentos de Gisele, de apenas 22 anos, ela diz não ter passado oaborto. “Eu pedia a Deus para fazer a vontade dele, não a minha. Se ele achasse que eu estava capacitada pra ter uma filha doente… Não, especial. Se ele me desse uma filha especial, que ele me capacitasse”, diz a mãe, devota da Igreja Evangélica Bola de Neve.

Por três meses, Gisele conviveu intimamente com esse desassossego. Fazia consultas a cada 15 dias. Não dormia à noite. Passava horas diante do bercinho da filha tão desejada. Gisele interrompera oanticoncepcional dois anos antes para tentar Geovanna. Mas a gravidez não acontecia. Ela já tinha até esquecido que estava sem pílula quando soube que estava grávida. Tantos sonhos ameaçados por um mosquito, por um vírus, pela nossa inépcia em controlar essa epidemia. Geovanna nasceu e o desafogo foi etéreo. A menina teve uma anemia que a levou para a semi-UTI do hospital por sete dias. Ninguém sabe dizer se foi por causa do zika. Ninguém sabe dizer muito. O quarto de Gisele ficou cheio de médicos, sedentos por informações sobre o vírus. Gisele era entrevistada em vez de orientada. A moça optou, então, por se voluntariar para o grupo de estudos que a Faculdade de Medicina de Jundiaí está montandopara pesquisar a relação entre o vírus, as mães e os bebês.

A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo está organizando 28 pólos de estudo, cada um com um foco sobre o zika e Jundiaí é um deles. Por pelo menos um ano, Geovanna Antonieta e Gisele serão monitoradas. “Eles falaram que o cérebro dela ainda pode não desenvolver. Não sabem se pode ter sequela, porque é um vírus novo. Eles não sabem se essa anemia teve alguma relação com o zika. Por isso, eu quis ser voluntária. Não só para ajudar as pessoas, mas pra ficar por dentro”, diz Gisele, recorrendo ao “eles” que nós leigos usamos para denominar toda a comunidade científica. Gisele ainda tem medo. Ainda passam mil coisas por sua cabeça. A cada espirro diferente, a cada mamada mais curta. “Eu tenho medo de ela não se desenvolver bem. A médica falou pra eu ficar estimulando.” Então, a mamãe olha a cria com imensa ternura. “Ela é muito esperta pra um mês. Eu canto música, converso. Ela fica me observando, dá uma risadinha…” Esse laço o zika não rompe.


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