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Jaru, 29 de março de 2024

“Conheci o assassino do meu pai e nos tornamos melhores amigos”, diz mulher

O que faz alguém perdoar um assassino? A canadense Margot von Sluytman pode responder a essa pergunta. Em 1978, quando ela era adolescente, seu pai, Theodore, foi morto durante um assalto à loja em que trabalhava.

Glen Flett, um dos assaltantes, apertou o gatilho. Anos mais tarde, ele se arrependeu. E fez contato com Margot. Desse primeiro gesto viria a surgir uma extraordinária amizade. Falando, e às vezes chorando, os dois contaram sua história ao programa Outlook, do Serviço Mundial da BBC.

“Desde cedo aprendi que agir de forma violenta ou raivosa às vezes funcionava. Tive meu primeiro contato com a polícia aos sete anos de idade. Estava com meu irmão e meu primo; eram três anos mais velhos do que eu e tinham grande influência sobre mim. Eles estavam invadindo uma casa, a polícia apareceu e nos pegou”, conta Glen.

“Quando eu tinha nove anos, houve outro encontro.”

Glen diz que, dessa vez, foi agredido fisicamente. Dali em diante, conta, passou a “odiar a polícia visceralmente”.

“Meus pais não viam essas coisas. Meu pai me amava e tentava esconder as coisas que eu estava fazendo da minha mãe.”

Aos 19 anos, Glen foi preso pela primeira vez.

“Fui pego roubando de uma loja e, quando o segurança me pegou, puxei um canivete suíço e o esfaqueei. Foi a primeira vez que fui preso. Eu tinha 19 anos.”

Aos 22 anos, Glen se casou. Arrumou um trabalho, teve um casal de gêmeos — mas não durou muito.

“No dia em que meus gêmeos nasceram fui para a cadeia por assalto à mão armada.”

Segunda ensolarada

Em 1978, Glen e seu comparsa — um homem que ele havia conhecido na cadeia — estavam morando em Toronto. Foi nessa cidade, no dia 27 de março, que Glen cometeu o ato que mudaria para sempre sua vida — e também a de uma família local.

“O dia estava lindo, lembro muito bem. Vínhamos planejando esse assalto. Queríamos roubar um entregador. O plano era derrubá-lo, pegar a sacola com o dinheiro e fugir. Derrubamos o cara e saímos correndo pela escada rolante, empurrando as pessoas que estavam em nosso caminho. Chegamos ao piso principal, corremos pelos corredores.”

“Uma pessoa vinha correndo atrás de nós, gritando, ‘parem esses caras’. Entramos em uma loja cheia de araras com roupas. Naquele primeiro momento, não vi Sluytman. Ele apareceu de repente, me segurou pelo colarinho e disse: ‘Pare. Desista, filho’.”

Glen mal consegue falar ao recordar esse momento.

“Meu parceiro e eu… acho que nós dois, espontaneamente, atiramos nele.”

Glen não soube, de imediato, que havia matado o pai de Margot.

“Ele estava me segurando, mas quando foi alvejado, me largou. Então eu caí no chão. Levantei e saí correndo.”

Ele e o parceiro correram para o carro e foram para o apartamento onde estavam morando. Quando ligaram a televisão, ouviram a notícia de que um homem havia sido morto durante um assalto.

Enquanto Glen descreve aquele dia fatídico, Margot, a filha de Glen, escuta em silêncio. Agora, emocionada, ela explica o que sente ao ouvir o depoimento.

“Sinto a dor. E também sinto uma dor intensa por… (começa a chorar) por Glen. Porque acho que deve ser muito difícil viver com essa dor.”

‘Minha vida mudou’

Margot começa a descrever como foi, para ela, o dia em que seu pai foi morto.

“Eu estava em casa. Minha mãe trabalhava em casa; ela cuidava de crianças. Eu estava no andar de baixo, brincando de professora com as crianças. Bateram na porta da sala de brincar. Dois homens altos. Perguntei quem eram, o que estavam fazendo ali. Disseram que eram policiais, então perguntei: ‘Meu pai teve um acidente de carro?’ Aconteceu alguma coisa?”

“E eles responderam: ‘Não, ele foi morto hoje em um assalto’.”

“Tínhamos uns varais no andar de baixo. As roupas brancas do meu pai estavam penduradas no varal. Olhei para as roupas e depois corri rápido para o andar de cima. Minha mãe estava sentada no topo da escada. Ela chorava muito. Olhou para mim e disse: ‘Margot, papai. Morto’.”

“Minha vida mudou”, conta Margot. “Metade de mim morreu quando meu pai morreu.”

“Éramos muito próximos em nossa família. E eu e meu pai éramos muito próximos. Duas semanas antes de ele morrer, tivemos uma grande discussão. Nós nunca brigávamos. E tínhamos acabado de fazer as pazes. Eu tinha 16 anos.”

Na manhã em que foi morto, Theodore Sluytman estava de folga, conta Margot. Mas foi à loja porque queria se preparar para uma liquidação. Era um ótimo vendedor, ela explica. E ganhava comissão.

“Quando ele estava descendo as escadas eu perguntei: ‘Posso ir com você?’ Ele olhou pra mim e disse, ‘Escute aqui, sua pestinha, vou sair por duas horas e já volto, ok? Você fica aqui’.”

“Eu não falo muito sobre isso”, diz Margot. “Acho que é a primeira vez.”

Luto

Enquanto Margot vivia o luto pela morte do pai, Glen foi preso e condenado por assassinato. Anos se passaram.

Na prisão, Glen passou a praticar o cristianismo. Começou a refletir sobre a vida que tinha destruído, o mal que causara, diz ele. Um dia, obteve permissão para sair da cadeia e passar alguns dias com sua própria família.

Glen relembra as visitas dos filhos pequenos.

“Meus pais traziam meus filhos para me ver. Eles vinham; a casa tinha dois quartos. Meus pais dormiam em um deles; eu e os meninos juntávamos as camas de solteiro e dormíamos todos juntos.”

“À noite, enquanto eles dormiam, eu ficava acordado, pensando na sorte que tinha. Sentia vergonha em pensar que alguém como eu podia viver isso, quando eu havia tirado a vida de um outro”, conta Glen, com a fala entrecortada por soluços.

Margot, por sua vez, precisou se distanciar um pouco da família. “Saí de casa três meses após meu pai ser morto. Saí porque queria que me deixassem em paz. Para poder pensar. A dor na minha casa era demais.”

Margot conta que sentia uma forte necessidade de conhecer a pessoa que matara seu pai.

“Eu tinha de saber. Por que fizeram aquilo?”

E Glen vivia atormentado pelo remorso.

“Queria que eles soubessem que eu compreendia a santidade da vida. E que eu não entendia isso antes de tirar a vida de Sluytman. Mas agora eu chorava até cair no sono às vezes porque eu sentia muito pelo que havia feito.”

Quando Glen saiu da cadeia, sua esposa, historiadora, descobriu onde estava a sepultura de Sluytman.

“Fomos visitá-la”, ele conta. “Era tão bem cuidada. Doze anos mais tarde, dava para perceber que a família visitava a sepultura com frequência. Ele não tinha sido esquecido.”

“Eu procurei a polícia. E também o promotor do caso. Disse a eles que tinha mudado a minha vida, que sentia muito (pelo que havia feito) e que gostaria de dizer isso à família Sluytman.”

No entanto, Glen foi desaconselhado a procurar a família. Um dos policiais temia que o contato trouxesse de volta a dor e as lembranças.

Contato

Anos mais tarde, um amigo de Glen leu um artigo sobre Margot. Ela tinha crescido, cursara universidade, era poeta e tinha acabado de ganhar um prêmio. Glen e sua esposa decidiram fazer uma doação pela internet em apoio ao trabalho dela. A doação foi feita anonimamente.

“Três horas mais tarde, recebemos um e-mail”, conta Glen.

“Você é casada com o Glen Flett, o homem que matou meu pai na segunda-feira de Páscoa, dia 27 de março de 1978?”, dizia a mensagem.

“Fiquei apavorado. Não sabia o que pensar”, conta Glen.

Foi assim que teve início um diálogo entre Margot e o homem que matara seu pai.

Em resposta, a esposa de Glen escreveu: “Vimos o seu trabalho, não queríamos fazer mal a você”.

“Não me fizeram mal. Vou mandar alguns livros para vocês”, respondeu Margot. “Você se importaria em pedir ao seu marido que me faça um pedido de desculpas?”

“Na manhã seguinte, encontrei uma carta curta, respeitosa e simples me pedindo desculpas. A partir daí, começamos a conversar. O que eu queria saber era: por quê? E também quais tinham sido as últimas palavras do meu pai.”

“Trocávamos e-mails, eu tinha milhões de perguntas. Ele respondeu todas. No final, ele disse que precisava me encontrar. Voei para British Columbia, onde Glen vive. E nos encontramos.”

“Não sabia como ela era, mas eu conhecia Margot. Tínhamos uma conexão forte nos nossos corações. Falei de coisas que eu sentia a respeito do que havia acontecido, coisas profundas, que nunca havia dito a ninguém.”

“Ela saiu do carro e perguntou ‘Glen Flett?’ Nos abraçamos e começamos a chorar. Conversamos e caminhamos durante uma hora e depois fomos para a minha casa, onde ele conheceu minha filha, Victoria, que tem nove anos. Ela disse, ‘Pai, é tão estranho, ela tem um jeito tão parecido com o seu!’”

Paradoxo

Desde então, Margot e Glen já se encontraram várias vezes.

Encontrar Glen “me ajudou de uma maneira profunda”, diz Margot. “Somos muito amigos. Dizemos ‘eu te amo’ um ao outro. Sei que para algumas pessoas é muito complicado ouvir isso.”

De fato. Perdoar, sim, dizem alguns. Mas amizade? Não acaba reabrindo a ferida?

“Não”, responde Margot. “É muito bonito. Porque é um paradoxo.”

“(Aos que perguntam por quê?) respondo: Porque é a coisa certa. É a coisa certa para mim. É a coisa certa para Glen. Sinto que meu pai está sendo celebrado. Minha mãe está sendo celebrada, os pais de Glen estão sendo celebrados. Toda a dor deles não é em vão. Temos esperança. Amor. Possibilidades. E temos diálogo. Falamos sobre a perda. Sinto gratidão.”


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